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As onças no Pantanal e as crises hídrico-climáticas 2i6r64

11 minutos de leitura
Pegada de onça na Comunidade Tradicional da Barra do rio São Lourenço.

Alcides Faria 5c1s5u

Biólogo e diretor da Ecoa.

Revisado por Fernanda Cano e André Siqueira.

 

– Secas e incêndios reduzem produtividade dos ecossistemas e inundação reduz territórios. Seriam razões para o comportamento atual de aproximação das casas?

– Registro na história: no livro O Pantanal Devassado o autor fala da “agressividade indígena” e as onças “insaciáveis… enfurecidas pela fome”.

As onças são as grandes ‘estrelas’ do Pantanal como sempre, pois em nenhum outro conjunto de ecossistemas são tão facilmente visualizadas como na planície pantaneira – o sei, pois em meus tempos de mateiro no Cerrado monitorava algumas delas. Hoje, com as pessoas com as câmeras dos celulares à mão, as colocaram definitivamente, no palco global: diariamente vemos vídeos dos animais em diferentes tipos de ações, no ataque sobre outros bichos para alimentar-se, acasalando, cuidando de seus filhotes ou simplesmente descansando à sombra.

Recentemente um macho atacou e devorou o senhor Jorge Avalo, responsável por um rancho de pesca no Pantanal do rio Aquidauna (MS), na região denominada Touro Morto. O ataque suscitou o debate sobre as razões para que tal tragédia ocorresse, sendo a que mais circulou foi a informação de que as onças eram atraídas por alimentos deixados propositalmente para tal pelo senhor Avalo.

Há alguns dias moradores de comunidades tradicionais ao longo do rio Paraguai informaram que onças estão se aproximando das casas, devorando cães e outros animais domésticos. Tal comportamento não é inédito. Em 2020/21, após os incêndios devastadores que tragaram mais de 4 milhões de hectares na planície pantaneira, os animais, repentinamente, tiveram comportamento semelhante – todos os cães foram devorados. Um estudo mostrou que os  incêndios deixaram um rastro de morte, tirando a vida de quase 17 milhões de animais. O grupo liderado pelos veterinários Walfrido Tomas, da Embrapa Pantanal, e Ronaldo Morato, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), realizou levantamentos em 126 áreas queimadas no norte e no sul do Pantanal entre 1º de agosto e 17 de novembro de 2020. Contou com a participação do diretor cientifico da Ecoa, André Nunes e do ex-diretor Rafael Chiaravalloti.

A se considerar sobre os efeitos do fogo é o fato de que a produção de mel pela Ecoa na Serra do Amolar, a montante de Corumbá (MS), não foi reestabelecida desde 2021. A serra foi devorada pelo fogo em 2020 – toda a vegetação foi incinerada. O último informe de Jocemir Antunes, o responsável da Ecoa para a região, é de que as indicações são de que as espécies da flora produtoras de néctar ainda não conseguiram se recuperar totalmente, o que limitaria o trabalho das abelhas.

A Ecoa, organização da qual faço parte, trabalha com todas as comunidades ao longo do rio Paraguai, tratando de conservação ambiental e defesa de seus principais interesses, o que permite que se tenha um sistema de circulação de informações diárias sobre condições ambientais de grande parte do Pantanal e casos como o das onças. Outras qualidades que contribuem para dados mais acurados incluem o trabalho em rede (Rede Pantanal e Rede de Mulheres Produtoras, por exemplo) e as investigações e levantamentos permanentes, associados a outras instituições. Esta ‘conjuntura’ permite que se tenha condições de diagnóstico privilegiadas, ultraando em algumas situações conclusões de especialistas e até mesmo estudos publicados.

Qual a conjuntura hídrico-climática dos últimos meses na planície Pantaneira? 3x483k

Saindo do período mais seco de sua história em 2024, a alta bacia do rio Paraguai, onde está o Pantanal, recebeu nas sub-bacias da parte norte chuvas intensas a partir de novembro e dezembro, precipitações que continuaram em janeiro de 2025. Tal quadro levou vários municípios a decretarem emergência. Essas águas chegam na depressão pantaneira, reabastecem suas águas subterrâneas e ocupam áreas antes secas e lentamente caminham em direção ao sul do Pantanal – processo ainda em andamento. Enquanto isso nas sub-bacias da parte sul a seca se prolongou até a segunda metade do mês de abril de 2025, quando chuvas intensas ocorreram nas sub-bacias dos rios Miranda/Aquidauana e Taquari, levando água em grande quantidade para a planície até então seca e sob risco de grandes incêndios.

E as onças frente a essa conjuntura hídrico-climática e sua aproximação das casas? 6n625c

A hipótese considerada pela Ecoa nesse momento é de que o comportamento dos animais, aproximando-se das casas e devorando cães e outras criações das famílias, pode estar relacionado aos eventos climático-hidrológicos extremos. De que maneira? Se as secas e os consequentes incêndios contribuem para a redução da produtividade dos ecossistemas, dos quais dependem as onças, as chuvas intensas e a inundação em grande escala da planície promovem a redução de território seco que poderia ocupar, levando-as para a proximidade das casas.

Recentemente André Siqueira, biólogo e diretor da Ecoa, visitou a comunidade tradicional da Barra do rio São Lourenço e conversou separadamente com várias famílias sobre a presença das onças e todas foram unanimes em afirmar que a presença das onças nas proximidades das casas teve início em 2021, após os incêndios de 2020.

Onças e humanos, um ‘caso’ antigo, como conta Virgílio Corrêa Filho no livro “Pantanais Devassados (IBGE-1946).

“Os pantanais bravios não se abriam acolhedoramente aos devassadores das suas peculiaridades, nem depois de contida a agressividade indígena… Os campos brutos, viveiros de cervos, de capivaras, de queixadas sustentavam, com a variedade sem conta da bicharia regional, onças insaciáveis, que não tardaram em frequentar os currais e chiqueiros, ao redor das casas habitadas, onde, mais facilmente do que em suas tocaias aleatórias, encontravam bezerros inermes e suínos de ceva, que arrastavam para o seu comedouro. E não raro, enfurecidas pela fome ou algum motivo ocasional, assaltavam os próprios moradores incautos, quando os surpreendiam de jeito. A caça ao felino temível resultou da própria condição fundamental de defesa, tanto dos rebanhos como dos homens.

Exercitou-se técnica especial em que se conjugaram as espingardas com a experiência dos guatós, hábeis no provocar as feras acuadas, e forçá-las à investida, em que as esperavam as zagaias pontiagudas, manejadas por braços destros, a cujos golpes certeiros raramente escapavam com vida.

Ao caçador indígena, capaz de atuar sozinho com a sua lança especial, cuja ponta de osso, primitivamente usada, foi substituída pelo punhal bigúmeo de aço, apropriado a engastar-se pelo cabo oco à extremidade da vara de madeira resistente, sucedeu a turma composta de atiradores, de pontaria segura, que escolhe a parte mais vulnerável do bicho, por onde possa a bala penetrar sem estragar o couro, auxiliado pelo zagaieiro em casos de desvio do tiro e pelos cães onceiros, adestrados cuidadosamente para tais caçadas, que exigiam dos desbravadores os mais atentos esforços, em guarda contra o perigo iminente.

Por maior que se afigurasse, todavia, não era único.

Também inúmeras cobras cuja picada venenosa pereceram milhares de vítimas, que o empirismo dos curandeiros não lograva sarar, contribuíam para molestar os pioneiros, que de mais a mais sofriam sem remédio as sangrias sem fim causadas pelos insetos hematófagos, cujos enxames se multiplicam nas quadras propícias.”

Registro final. Publicamos o trecho do livro como um indicativo histórico, como elemento para investigação. Somos contrários a qualquer tipo de caça das onças como meio de resolver conflitos e riscos para as pessoas. Existem meios de solução, estando entre os principais o combate ao desmatamento, a prevenção contra o fogo e meios mais urgentes, como equipamentos para espantar os animais quando se aproximam.

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